ab aeterno
, 2017, ed. 2022, A grande obra (The great work), 2022 and opus II, III & V, 2022. Installation view at the solo show Palimpsesto, Solar dos Zagallos, Almada (PT), 2022.
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PALIMPSESTO

29.01.2022 — 27.02.2022
Solar dos Zagallos


(O presente texto é resultado de uma série de visitas ao atelier de Salomé Lopes e de conversas mantidas com a artista ao longo dos últimos meses. Neste sentido, optei por transcrever alguns segmentos de diálogos que se encontram devidamente mencionados.)

Existe uma dimensão teatral muito presente no trabalho da Salomé Lopes, seja pressentida através de uma noção de palco equivalente à totalidade do espaço expositivo, como uma espécie de instalação total na qual o espectador / ativador se encontra submerso e deambula através dela, redescobrindo elementos que nos parecem existir “desde sempre, por todo o sempre” (ab aeterno, 2017, ed. 2022); seja pressentida através de cenários mais circunscritos que Salomé cria (A grande obra, 2022, uma instalação que é uma secretária de trabalho e Experiência(s) 3, 5 e 2, 2022, que são três vídeos) permitindo-nos, neste caso, bisbilhotar com o olhar. Se o primeiro momento (ab aeterno) é mais de uma experiência deambulatória, aberta, imersiva e pausada, que exige sobretudo uma disponibilidade para ver e escutar os monólogos individuais de cada um dos objetos e respetivos jogos de luzes, ao invés, o segundo momento aponta, precisamente, para o diálogo entre materiais e objetos que têm um particular poder de transformação, num exercício de atenção relativamente ao que se encontra sobre uma secretária e ao que se encontra projetado em três ecrãs. De uma forma mais ampla, são estes os dois “momentos” que se apresentam na exposição. Apesar de distintos, ambos passam por um processo de recolocação temporal, no qual a artista parece recorrer, metaforicamente, a uma técnica idêntica à de um palimpsesto – rasurando, reescrevendo e reformulando.

ab aeterno (2017, ed. 2022)

BC: Um prego, uma roda de madeira, um pau (espécie de cajado), uma taça de barro, uma pedra (que pode aludir para uma qualquer construção). São objetos que podem ter sido várias coisas e ter tido várias funções. São, também, maioritariamente intemporais. Têm tanto de início como de fim. Parecem estar no mundo desde sempre. Mas lembro-me de teres dito que estes podiam ser, também, os objetos que restaram, que ficaram.

SL: Na altura tinha uma ideia do género: o que restaria de toda a humanidade, depois de todo o barulho cessar, depois de todas as conversas (ou monólogos para um deus), o que ficaria depois do silêncio. Uma coisa que já deves ter percebido é que não me interesso por cenas realistas, universos reconhecíveis nesse aspeto. Interessa-me muito mais pegar num pormenor e explorá-lo até ao extremo, ou reunir vários temas que me interessam e se interligam de alguma forma e criar um cenário por abstração, ou por extrapolação, e não de um modo que faça sentido com a realidade.

BC: Sinto a instalação triste, embora muito bonita. Parece que só resta a luz a iluminar objetos que se encontram sós, deixados num palco do qual tudo o resto desapareceu.

SL: Acho interessante dizeres que achas a obra triste porque especialmente agora, pensando nela em contraste com A grande obra (2022), percebi que elas refletem estados de espírito e pensamentos muito diferentes. Sempre me interessou muito a questão do mistério: daquilo que está por detrás das coisas, daquilo que pode haver mais. Sempre tive mesmo uma necessidade de ter essas respostas, só que nessa altura eu estava muito triste, muito revoltada, e acho que a obra reflete isso, é uma obra de revolta. Através do silêncio, sim, mas é uma obra de revolta, de desespero, porque lá está, fala muito dessa ausência de um sentido, dessa ausência de alguma coisa mais que dê sentido a toda a história da humanidade. Atualmente, acho que o que faço é muito diferente porque é muito mais esperançoso — é um olhar para as coisas como se elas pudessem ser mágicas, como se houvesse alguma coisa mais que dá sentido a tudo isto.

A grande obra (2022)

BC: Nesta secretária, as peças que ocupam o espaço parecem ser mais reconhecíveis do que identificáveis, na medida em que até se podem assemelhar a, mas muito pouco nos dizem sobre. É, talvez, pela sua complementaridade – pela conversa cruzada entre os diferentes elementos que a compõe – que nos deixamos mergulhar nas perceções desta instalação. “When you’re looking at two things, don’t look at them, look between them ... the space between two things, that’s very important.” (John Baldessari)

SL: Sim, é exatamente isto. Mas isto é o que tenho em mente na conceção de qualquer instalação. Até é algo sobre o qual já escrevi: esta ideia de que o importante não são os objetos em si, mas sim uma espécie de presença que se cria no espaço entre eles.

BC: Tu entregas-nos um palco que tem tanto de laboratorial quanto de ritualístico – duas dimensões que, apesar de, atualmente, parecerem contraditórias, já se encontraram intimamente ligadas, noutro tempo, por exemplo, pela alquimia. De onde vem este teu interesse?

SL: Interesso-me por tudo aquilo que tem um desvio — por tudo aquilo que deixa uma janela aberta para qualquer coisa de fantástico. Quando digo desvio falo do momento em que o pensamento lógico é interrompido para dar lugar ao pensamento espontâneo e livre que nos permite sonhar, questionar e contrapor para ver as coisas de maneiras novas. Interessa-me muito essa abertura, a potencialidade de algo mais. Quando penso nisto tenho sempre uma imagem na cabeça que é a de uma pedra encima de uma mesa: não me interessa a pedra, mas sim o que está debaixo/atrás dela, ou mais precisamente, interessa-me o momento em que viras a pedra para ver o que está por detrás, e é sempre esse momento que procuro, sempre assim sucessivamente — é uma procura constante por aquilo que está debaixo, que, de alguma forma, nunca se esgota. Portanto, não me interessa a alquimia nela mesma, como fim, mas sim como começo, como ponto de partida. Na verdade, o que me interessa mesmo é a mudança de paradigma que te pode fazer olhar para processos e materiais como algo para além de ou que está por trás deles mesmos. Lá está, como uma nota que escrevi nos últimos meses: não é a magia dos rituais ou processos do passado, mas a magia possível nas nossas vidas.

BC: Há várias reflexões a partir da perceção desta instalação. Uma delas é a noção de questionamento. Ninguém nos garante quais elementos aqui se encontram (como disse acima, eles podem ser reconhecíveis, mas muito pouco identificáveis) nem o que resulta da sua combinação. Pouco sabemos dos ingredientes e não conhecemos a receita. “it’s not what’s there, it’s about what’s not there” – ecoa na cabeça.

SL: Gosto muito dessa frase! Acho que já toquei neste assunto, mas interessa-me sobretudo criar algo que seja um vestígio de qualquer coisa transcendente. Nesse aspeto, claro que o trabalho se trata de um jogo entre a realidade e a ficção ou entre o que é real e palpável e a possibilidade de algo que é inominável, misterioso, inalcançável. Interessa-me muito isso — a potencialidade ou possibilidade de algo, o que as coisas são em potência. Há uma ideia que já tinha lido antes algures, de que a alquimia procura trabalhar em conjunto com as forças da natureza ou que simplesmente as ajuda a produzir os seus resultados mais depressa, em particular ajudar a terra a dar à luz os metais. Interessa-me sobretudo esta ideia de que os metais estão vivos e crescem no interior da terra. Já na linha do que estudei e trabalhei na obra anterior (Vi um céu de fogo, 2021), a crença de que os metais têm vida, vontade própria, ou mesmo poderes mágicos é uma das mais antigas que acompanham a humanidade em praticamente todas as suas civilizações.

BC: Sempre vais fazer acompanhar a instalação A grande obra (2022) daqueles opus em vídeo?

SL: Uma coisa eu sei: A grande obra é uma instalação, mas vai estar sempre em diálogo com algo mais – uma série de vídeos em televisões na parede ou projetados. Uma coisa que tenho muito clara em mente é que quero algo vivo, a acontecer, algo com fogo e algo com água. No início tinha uma vela acesa encima da secretária e percebi que o que me interessava mesmo era a presença do fogo. Antes disso, no início do projeto, já tinha pensado também que queria alguma coisa com água. Agora, pus a hipótese de ter o registo de um tacho com água a ferver, possivelmente com algo lá dentro (que é uma prática mágica usada em várias partes do mundo, na qual, supostamente, o vapor da água tem propriedades mágicas e curativas).

SL: Ainda não sei.

Texto escrito e conversa conduzida por Beatriz Coelho, 20 de Janeiro de 2022.










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©  Salomé Lopes, 2022